quarta-feira, 8 de junho de 2011

No limiar das sensações

Quanto mais vivo, mais discordo de Platão e sua noção de “mundo das idéias”. Que me perdoe o filósofo grego, mas Sartre sim é que entendia das coisas mundanas... 
Pouco mais de um mês atrás tal frase me veio à mente pela primeira vez, e desde então tenho elaborado melhor, algo que há algum tempo passeia pelos meus pensamentos. As culturas contemporâneas valorizam demais a racionalidade em detrimento do contato emocional. 
Uma pequena observação de núcleos familiares e comunitários, meios de comunicação e doutrinas sociais, é o suficiente para se deparar com um imenso incentivo à capacidade de sobrepor a razão sobre a emoção. Crianças são repreendidas por rirem alto demais ou chorarem um pouco mais do que deviam, adolescentes são ensinados a suprimir suas emoções a fim de se prepararem para tornarem-se adultos “de verdade”, e bem, adultos são reticentes a permitirem-se sentir, já que aprenderam, desde onde se lembram, que sentimentos demais servem apenas para enevoar a capacidade de julgamento ideal das situações.
O senso comum aplicado costuma ser ainda mais severo. Ouvem-se críticas claras àqueles que deixam levar-se demais por seu lado emotivo, principalmente se explicitando uma emoção de tristeza, comumente associada à fraqueza. Seria então, que a expectativa de força e capacidade pressupõe uma espécie de robotização do comportamento humano? Desculpe-me, mas esta é uma enorme insensatez moderna.
Dentre tantas raízes de condução para este estágio atual de letargia emocional, onde o homem de valor é aquele que busca regular suas emoções para estender sua necessidade de raciocínio e controle, identifico um ramo da filosofia ocidental como grande precursora. Platão postulava que a sabedoria provinha do exercício da razão e era necessário ao indivíduo submergir-se em teias de pensamentos enquanto relegava as emoções, posto que a relação com as sensações traria a tendência ao erro do discernimento e a incapacidade de compreender os verdadeiros anseios da mente. Tal discurso é parte do entendimento chave da noção cunhada por ele de “mundo das idéias”. Estes ensinamentos tornaram-se pilar da filosofia grega, e por conseguinte, da filosofia ocidental, transpondo-se assim para a extensão do conhecimento cultural de inúmeras sociedades que beberam destas fontes. Não retiro a importância do desencadeamento intelectual resultante da filosofia platônica, só questiono o papel das emoções em sua obra.
Vivemos primordialmente de estímulos perceptuais através do contato com a experiência natural, nesse sentido, nada significa mais para mim que o entendimento de que apenas aprofundando-se no mundo das sensações, é possível apoderar-se de todas as ferramentas oferecidas para a condução ideal da razão. A construção das idéias propõe utilização máxima dos conceitos pertinentes a um determinado assunto. Ora, nenhum filósofo ou pensador que se preze pode conjecturar com propriedade sobre qualquer assunto específico se passa a vida abstendo-se de experienciar. O empírico é parte do aprendizado e do crescimento. Evitar o mergulho no rio das emoções resulta numa espécie de conhecimento sem causa. Como se me propusesse a discorrer sobre a perda de familiares quando desde que nasci não há nenhum histórico de morte em minha família.
No entanto, sei bem que não posso repousar todo o peso de tal panorama contemporâneo unicamente nos ombros dos preceitos culturais. É sabido que o homem sempre procurou minimizar seus momentos de sofrimento e provavelmente sempre procurará. Manter estreito contato com o mundo das sensações é tão igualmente saboroso e inebriante quanto amargo e causticante, vive-se mais próximo dos limiares da vida. Se paga um preço pela amplificação de todos os momentos de felicidade e prazer, a consequente amplificação dos momentos de tristeza e pesar. Já no domínio puro da razão, encontramos exatamente aquilo que se busca na maioria das vezes, a quase que ininterrupta linha da estabilidade aliada ao escudo do tempo, provedor da ilusão de que nossos sentimentos são simplesmente efêmeros e facilmente substituíveis.
De fato, constitui-se numa proposta tentadora, anestesiarmos nossa porção tempestuosa e emotiva em troca do firme solo racional. Não direi que nunca lancei palavras fumegantes ao ar nos momentos em que mais sofri, ou até mesmo em alguns que pouco sofri. Declarei fim à primazia dos sentimentos e desejei aprender as artes milenares da abstração factual e do pragmatismo emocional. Se as aprendi ou não ao longo do caminho, não sei, sei, contudo, que aprendi que a vida estabilizada e morna é chata! Negar aos meus sentimentos o oxigênio da existência trouxe-me apenas uma falsa noção de tranqüilidade e paz, no sentido que pouco me incomodava nos percalços da vida, mas também pouco me revigorava nos prazeres mundanos.
Se quiser experimentar o verdadeiro tempero da vida, é preciso estar disposto a queimar a língua aqui ou ali. Nós, seres humanos, concebemos importância a todo e qualquer conceito principalmente em sua ausência. Sem vivenciar a dor e o sofrimento, pouco se valoram a perfeição e a singularidade dos pequenos momentos, e não nos enganemos, a felicidade real é construída nestes pequenos momentos da vida.
Por isto atesto, razão e emoção deveriam estar interligados em ressonância, identicamente valorizados e apreciados pelo homem. É apenas através de um que o outro se estabelece, como o conceito oriental de yin-yang. Suprimir um dos lados leva unicamente ao desequilíbrio e a saturação equivocada do outro. Pensa-se demais, pondera-se demais, calcula-se demais, sente-se de menos. O resultado são mais e mais relatos de “como teria sido?”. Seja racional o quanto for possível, mas seja tão emocional quanto, sempre que deparar-se com a necessidade de sentir.


O verdadeiro valor da luz aparece quando estamos nas sombras. Só neste momento percebemos quão tolos fomos, quando menosprezamos o que realmente importava. Pagamos por nossa natureza, incapaz de evoluir, sem as marcas de nossos erros. Mas também somos brindados com este dom, de recriar-se a partir do zero, e tentar novamente...

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